sábado, 13 de abril de 2013

SOBRE OS LIVROS DE RADUAN NASSAR...


NADA ALÉM DOS PÉS

Por Gustavo Atallah Haun (*)


Outro dia uma professora de uma universidade daqui da região grapiúna estava comentando em sala de aula os casos de podolatria na literatura brasileira. O tema bastante curioso suscitou em alguns, estranheza, e, em outros, a rememoração de fatos relacionados.
A docente, com toda a lhaneza que lhe é característica, falava sobre a famosa passagem do livro O Guarani, de José de Alencar, quando a diáfana Ceci está dormindo e o índio Peri enxerga o pezinho límpido, puro e alvo fora dos lençóis e do camisolão noturno. São nada mais, nada menos, do que 03 (três) páginas descrevendo o pé da portuguesinha. Só que, após ler o romance romantista, percebe-se que não há tal descrição... Creio que a mestra estava tratando de outro livro do mesmo autor, A Pata da Gazela. Vai saber.
Então, num átimo de segundo, lembrei-me, com toda certeza, de outro escritor que tem uma verdadeira tara por pés. Como entusiasta e fã ardoroso, não pude me conter e resolvi entrar de cabeça no debate sobre o assunto. O genial Raduan Nassar, suprassumo da prosa brasileira dos últimos tempos, com apenas três livros lançados conseguiu desenvolver o seu fetiche pela parte do corpo humano, digamos, nada convencional.
Em Lavoura Arcaica (1975) a personagem André detinha a sua paixão pelos membros inferiores: na modorra das tardes vadias na fazenda, [...]; amainava a febre dos meus pés na terra úmida” (p. 13) ou quando idolatrava a irmã Ana dançando, ele

 “desamarrava os sapatos, tirava as meias e com os pés brancos e limpos ia afastando as folhas secas e alcançando abaixo delas a camada de espesso húmus [...], e ficava atento para os seus passos que de repente perdiam a pressa e se tornavam lentos e pesados, amassando distintamente as folhas secas sob os pés e me amassando confusamente por dentro(p. 32-33)

são duas das tantas passagens acerca do tema.
Já na obra Um Copo de Cólera (1978) esse sórdido deslumbramento é acentuado de vez em Raduan. Não são poucas as referências sobre os pés na obra. Antes de se deliciarem numa noite de amor ardente, o protagonista assevera: “fui tirando calmamente meus sapatos e minhas meias, tomando os pés descalços nas mãos e sentindo-os gostosamente úmidos como se tivessem sido arrancados à terra naquele instante” (p. 12) e mais adiante “conhecendo, como conhecia, esse seu pesadelo obsessivos por uns pés, e muito especialmente pelos meus, firmes no porte e bem feitos na escultura[...]” (p. 13). No final da briga apoteótica entre os dois, o protagonista chega a masturbar com os pés a personagem feminina:

 “‘estou sem meias e sem sapatos, meus pés como sempre estão limpos e úmidos’ [...] ‘você se lembra do pé que eu te dei um dia?’ e ela então disse ‘amor’ dum jeito bem sufocado, e eu velhaco recordei ‘era um pé branco e esguio como um lírio, lembra?...’ [...] ‘que que você fez com o pé que eu te dei um dia?...’ e ela entrando em agonia disse suspirando ‘amor, amor, amor’” (p. 73-74).

Por fim, o último livro publicado por Nassar, Meninas a Caminho (1997), com cinco contos, foi na verdade escrito nos idos de 60/70.
Aqui o célebre autor paulista volta às raias com a sua loucura. Dessa vez de leve, preparando o caminho para as duas obras que se seguiram, por isso as menções aos pés são menores, contudo constantes.
No primeiro conto, que dá nome ao livro, na descrição das personagens é a primeira característica acentuada: “Vindo de casa, a menina caminha sem pressa, andando descalça no meio da rua” (p. 09) ou “Descalços, sem camisa, os corpos arcados, os meninos [...]” (p.11) ou ainda “O seu Giovanni arrasta as alpergatas na outra calçada” (p. 18); ou a paralítica, a velha mestre-escola: “os chinelões de lã descansando no assoalho, os pés sobre o banquinho [...]” (p. 24) que dá uma lição às crianças e a imagem do livro didático é de um sapateiro. Do que mais seria?
Mas é somente no segundo conto, Hoje de Madrugada, que o bicho pega:

e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pêlos, subindo afoito, me queimando a perna com sua febre.” (p. 57).

Eis mais uma curiosidade e delícia da literatura brasileira, as suas fixações obsessivas e os seus dramas. Em poucos livros Raduan Nassar nos legou a sua paixão acerca dos pés, um podólatra inigualável, que não merece ser olvidado pela densidade da sua obra, curta, mas exótica e profunda!
(*)Gustavo Atallah Haun é professor, formado em Letras, UESC, e ministra aula em Itabuna e região. Escreve para jornais de Itabuna, Ilhéus e edita oblogderedacao.blogspot.com (g_a_haun@hotmail.com). É maçom, da Loja Acácia Grapiúna.


BIBLIOGRAFIA:

NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3ª edição rev. pelo autor. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

______________. Um Copo de Cólera. 5ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

______________. Menina a Caminho. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

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